Bíblia do Amor
Passava o dia, todos os dias, há mais de trinta anos, a contar os abraços que ia vendo. Percorria as ruas de todas as cidades – ia à boleia na maioria das vezes e fazia questão de se despedir com um abraço bem apertado – e anotava, num pequeno caderno negro, o número de abraços que encontrava pelo caminho.
'Sou um contabilista de afectos, um engenheiro de cumplicidades. Quero construir um diagrama de amor: perceber se existe alguma relação de causa-consequência entre o número de abraços e factores tão objectivos como a localização da cidade, a temperatura do ar, se está sol ou chuva. No fundo: quero ser a base da implementação de uma estratégia que dinamize a ocorrência de abraços e, por óbvia inferência, de amor. E para tomar medidas é preciso pesquisar, pesquisar muito, pesquisar tudo. Escusam de agradecer', pedia, com assertividade, aos seus amigos e familiares mais próximos.
'Amor', explicava a quem, com curiosidade e evidente desconcerto, lhe perguntava o que raios andava a fazer com a sua vida. 'Sugiro que façam o mesmo', aconselhava.
'Chamo-lhe Bíblia do Amor e dividi-a em milhares de pequenas epístolas, versículos e mensagens variadas, sustentadas empiricamente. É importante que consigam, com esta Bíblia, doutrinar as pessoas: as novas pessoas. Estou em crer de que, depois deste momento, a História da Humanidade tomará um novo rumo: o rumo que, afinal de contas, sempre foi defendido por todos mas praticado por quase nenhuns, como o meu estudo inequivocamente demonstra.
Nele, aponto soluções práticas e claras para disseminar o amor – representado, neste caso, pelo abraço. Uma das medidas, só para entender mais claramente e desde já do que falo, consiste em algo tão banal como criar Salas de Abraço em todas as ruas do país: espaços desenhados para a partilha do abraço.
Para além dessas, proponho ainda, por exemplo, as Salas de Saudade, nas quais as pessoas que já não se vêem há muito se encontram, ou os Shoppings de Ternura, nos quais será possível a cada cidadão oferecer e adquirir ternura a preços bem acessíveis. Tome e comece, desde já, a mudar o mundo', disse, olhos nos olhos, ao Presidente da República, no instante em que lhe passava para a mão um livro gigante e uma minúscula pen drive.
'Todos os cientistas deveriam devotar toda a sua existência, todo o seu talento, todo o seu conhecimento, à implantação, à propagação do amor. Criar vacinas de amor, comprimidos de carinho. É inacreditável como se perde tempo a tratar da pele quando não se trata do que nos arrepia a pele. Inacreditável.
Se eu fosse cientista já tinha inventado um vírus de amor. Não sou, e por isso é que estou neste lado do trabalho: o da recolha exaustiva de dados. Estou certo de que conseguirei, com este trabalho de décadas, mudar o mundo. Creio que é esse o desígnio mínimo que qualquer pessoa normal deveria ter para a sua vida.
Mas, para ser sincero, nem era necessário ir tão longe: bastaria que cada um mudasse a sua vida para que todo o mundo mudasse. Sim: mudar o mundo pode ser um processo desencadeado por puro egoísmo. Fossemos todos egoístas e corajosos e esta latrina seria muito mais habitável', afirmou, tempos mais tarde, perante uma audiência composta por amigos, familiares e colegas da sua ala do Hospital Psiquiátrico. Todos o abraçaram calorosamente.
(este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico)
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